terça-feira, 30 de setembro de 2014

As Residências - Metodologia e conteúdos

Cada residência é composta por:

Participantes locais, dos quais pelo menos um actor circula por outros países
  • entre 10 a 15 pessoas, na sua maioria actores, mas também bailarinos, artistas plásticos, artesãos e músicos (amadores ou profissionais); 

Participantes da Propositário Azul, dos quais dois actores sempre diferentes
  • entre 4 a 6 (encenador, produtor, 2 a 4 actores); 

No final de cada residência haverá uma apresentação pública do trabalho desenvolvido com a possibilidade de debate e reflexão com os espectadores.


Objectivos
  • Afirmar e divulgar internacionalmente a identidade criativa de artistas nacionais, com propostas de intervenção dialogantes com as necessidades e as especificidades de diferentes contextos de criação e produção, envolvendo nomeadamente a participação de comunidades e artistas locais;
  • Criar uma memória partilhada entre actores e outros artistas nacionais e estrangeiros e desenvolver sinergias de produção entre os vários parceiros internacionais, com vista a constituir um património comum que se pretende gerador de futuras ideias e projectos a circular entre os vários países envolvidos e não só.
  • criar as condições de excelência para um trabalho aprofundado de análise dramatúrgica duma determinada obra e de experimentação cénica das várias propostas de interpretação do texto, cruzando a visão de pessoas de culturas diferentes; este factor multicultural é essencial para uma abordagem que se quer plural e não estereotipada;
  • promover a pesquisa formal e semântica através do intercâmbio artístico e a interdisciplinaridade entre actores, cenógrafos, músicos, figurinistas, bailarinos, videastas, etc, com condições para uma exploração ampla e sempre renovada do texto escolhido, através dum processo de contágio de sensibilidades diferentes, de modos particulares de exercer a prática artística e do cruzamento de diferentes percepções sobre os temas que o texto reflecte; a disponibilidade dos intervenientes para este contágio é essencial para alimentar o trabalho e produzir resultados inesperados que vão constituindo, pouco a pouco, um património e uma linguagem comum;
  • promover a especialização de intérpretes e de criadores através partilha e da aplicação de algumas ferramentas de trabalho das residências.


Estrutura programática de cada residência
  • leitura da obra completa seguida de breve contextualização histórica;
  • abordagem do episódio a trabalhar durante a residência; discussão alargada dos diferentes temas identificados; associação e pesquisa de materiais de suporte (textos, imagens, filmes, músicas, objectos);
  • exercícios para predisposição física e criativa (aquecimento, relaxamento e imaginação);
  • interpretação cénica de várias propostas de desenvolvimento de ideias, conceitos, histórias ou materiais (individualmente ou em grupo);
  • exercícios teatrais sobre as dicotomias ou polaridades: espaço e acção teatral, individualidade e coralidade, narração e teatralidade, quotidianeidade e síntese, espontaneidade e composição, acontecimento e acidente, arbitrariedade e sentido; intenção e reconhecimento, presença e transformação, criatividade e repetição (continuidade);
  • exercícios de interpretação oral do texto por via indirecta (deslocada do sentido do texto): ritmo, imaginação vocal, ressoadores;
  • composição e repetição de sequências, trabalho de apuramento técnico;
  • apresentação pública do resultado da residência; conversa com os espetadores.


Abordagens práticas, conteúdos e aproximações dramatúrgicas:
Ponto de vista sobre o texto:
  • A memória como necessidade;
  • O despertar da consciência humana;
  • Paralelismos e associações históricas;
  • A desmontagem psicanalítica do épico, os seus símbolos e arquétipos;
  • Dicotomia feminino/masculino: erotismo, poder, identidade;
  • Outras dicotomias: autocracia/democracia, inocência/consciência, vida/morte, poder/resignação;

Ponto de vista sobre o intérprete:
  • De onde nasce a palavra? Como aparece um texto na cena? Porque falamos?
  • A despersonalização e o ego;
  • A problemática criativa da decisão;
  • As direcções, a definição clara de acções e pensamentos;
  • Espaço contínuo e descontínuo; caracterização coletiva de espaços emotivos, psicológicos ou quotidianos;
  • Síntese, arbitrariedade e composição;
Ponto de vista sobre a interdisciplinaridade e a contaminação do local:
  • Interpretação da materialidade específica dum determinado lugar (local de ensaios, da apresentação final ou de outros espaços);
  • Exploração de meios menos imediatos na criação cénica: escultura, pintura, instalação, vídeo, tecelagem, barro, etc., como via para a determinação dum território inesperado, novo e distante que desafie o olhar;
  • Introdução de elementos próprios do imaginário e das tradições locais como música (sonoridades instrumentais e vocais), contos, movimentos do trabalho (incluindo a manipulação de objectos) e danças.

As Residências - Calendarização

RESIDÊNCIA EM LISBOA, de 16 a 22 de Dezembro de 2014
Organização e acolhimento Hugo Sovelas
Propositário Azul

RESIDÊNCIA EM GAZA E CISJORDÂNIA, de 4 a 17 de Janeiro de 2015
Organização e acolhimento Jackie Lubeck e Marina Barham
Theatre Day Production e Al-Harah Theater

RESIDÊNCIA EM VISEU, de 24 a 30 de Janeiro de 2015
Organização e acolhimento Sónia Barbosa
Teatro Viriato

RESIDÊNCIA EM MONTEMOR-O-NOVO 23 a 29 de Março de 2015
Organização e acolhimento Hugo Sovelas
O Espaço Do Tempo

RESIDÊNCIA NA ILHA DA ARMONA (OLHÃO) 25 a 31 de Maio de 2015
Organização e acolhimento João Rodrigues
Ilha dos Amores

RESIDÊNCIA EM SEILLON-SOURCE-D'ARGENS, de 16 a 22 de Agosto de 2015
Organização e acolhimento Marina Meinero
Mairie de Seillon-Source-d'Argens

RESIDÊNCIA EM POLLINA, 24 a 30 de Agosto de 2015
Organização e acolhimento Patrizia D'Antona
Associazione Teatrale Còrai

RESIDÊNCIA EM LISBOA (Lx Factory), 7 a 18 de Setembro de 2015
Organização e acolhimento Elsa Valentim
ACT - Escola de Actores

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

O texto

O Épico de Guilgamesh é uma narração suméria datada do terceiro milénio a.C, e descoberta em placas de argila em 1849 em Nínive, na região norte do actual Iraque, pelo arqueólogo Austen Henry Layard. A primeira tradução moderna foi feita por George Smith e publicada em 1880.Conta a história do mítico rei Guilgamesh que a actual arqueologia comprova ter reinado por volta de 2750 a.C em Uruk, a sul do actual Iraque. Tido como o mais antigo texto da humanidade conhecido até hoje, tem sido objecto de contínuas e actualizadas traduções resultantes de novas descobertas arqueológicas que cruzam versões de épocas diferentes.

O propósito

Seduzidos pela possibilidade de tocarmos num texto que relança as bases duma nova interrogação sobre a nossa História comum e sobre a percepção duma identidade humana e universal, aspiramos a encarar esta criação como um processo de renovação e contaminação artísticas: igualar o texto no propósito de ver sem outros aprioris, tocar na sua matéria, revelá-la com a coragem de sermos desmentidos nas nossas velhas e putrefactas convicções; sermos abalados pela intromissão do outro como inquietação e como iluminação; ter a coragem de recomeçar e de avançar por vias estranhas e indefinidas. 

Propomos assim realizar um conjunto de residências artísticas em que se faça uma abordagem ampla deste texto, reunindo um conjunto de intérpretes e artistas que proponham interpretações e representações próprias do épico. Queremos juntar ao núcleo criativo do projecto, outros artistas locais, profissionais ou não, entre actores, artistas plásticos, músicos, etc. Algumas destas pessoas poderão interessar-se em colaborar na perspectiva do desenvolvimento dum percurso artístico próprio, outras numa perspectiva de enriquecimento da sua formação técnica e artística, outras ainda por curiosidade ou para se darem a conhecer e ao seu trabalho. 

A sessões de leitura e de debate, com apresentação de vários documentos auxiliares para a análise da obra e propostas de interpretação dos seus diferentes episódios, suceder-se-ão períodos de trabalho prático que compreendem exercícios de interpretação oral do próprio texto, como via para uma apropriação das palavras, e propostas de representação na cena de diferentes situações enunciadas. Durante o trabalho, diferentes artistas poderão influenciar as propostas com o vocabulário próprio das suas disciplinas artísticas, no sentido de ampliar as possibilidades expressivas e materiais para abordar teatralmente o texto. 

No final de cada residência, haverá uma apresentação do trabalho encarado como algo em construção e, por isso, inacabado. A esta apresentação seguir-se-á um debate com o público. 

Abordagem

Fazer uma aproximação às palavras que repousam na sua forma primitiva, claras e perenes, elementares. São aqui parcelas de sentidos que valem enquanto tal: parcelas, bocados muitas vezes descontínuos que anunciam ritmos, imagens isoladas, separadas. Proceder a uma aproximação delicada e precisa, inquiridora, capaz de soltar as parcelas de sentido que a distância a que estamos deste texto permitem reconstruir, como cacos de barro cujas formas se vão organizando em fguras ou objectos cada vez mais reconhecíveis e familiares, às vezes enigmáticos e descontínuos, lampejos de coisas que não identifcamos sempre ou totalmente.

Como nasce da palavra a acção teatral? Partindo do princípio de que é possível proceder a um profundo esvaziamento de referências (de ruído?), que texto se descobre e que espaço preenche e de que modo se põe em cena? Como assumir artisticamente o gesto paciente e receptivo do arqueólogo que, estranho aos fragmentos que desenterra, se alimenta permanentemente do mistério da sua decifração – decifrar igual a imaginar, a criar realidade a partir do que os olhos não vêem, a partir do que de nós mesmos se projecta sobre algo? Como incorporar nos nossos modos e na nossa prática o movimento sensível, a aproximação delicada capaz de preservar, revelando, o que paira nos materiais textuais e na memória que deles emana? Como «prefgurar essa memória» abolindo assim, e intencionalmente, um tempo cronológico artifcial que, por sê-lo, separa o que pode estar junto?
Como nos descobrimos e nos perdemos nos sulcos cuneiformes de uma dúzia de placas de argila, quebradiços pela sua natureza material rígida, mas duradouros pela sua natureza poética profundamente humana e subjectiva? Com que voz e com que corpo perturbamos e nos fundimos num lugar sem tempo (o teatro?), em que o outro já não é distante e a sua diferenciação se faz a partir da identifcação das contradições e das revelações (ou da surpresa) que brota de cada um?


Como fazer do acto de ler o próprio mecanismo de representação cénica ou, doutra forma, como fazer da representação um processo de auto-inscrição no que nos é exterior, no que já lá estava, no que nos precede e nos continua?