quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Abordagem

Fazer uma aproximação às palavras que repousam na sua forma primitiva, claras e perenes, elementares. São aqui parcelas de sentidos que valem enquanto tal: parcelas, bocados muitas vezes descontínuos que anunciam ritmos, imagens isoladas, separadas. Proceder a uma aproximação delicada e precisa, inquiridora, capaz de soltar as parcelas de sentido que a distância a que estamos deste texto permitem reconstruir, como cacos de barro cujas formas se vão organizando em fguras ou objectos cada vez mais reconhecíveis e familiares, às vezes enigmáticos e descontínuos, lampejos de coisas que não identifcamos sempre ou totalmente.

Como nasce da palavra a acção teatral? Partindo do princípio de que é possível proceder a um profundo esvaziamento de referências (de ruído?), que texto se descobre e que espaço preenche e de que modo se põe em cena? Como assumir artisticamente o gesto paciente e receptivo do arqueólogo que, estranho aos fragmentos que desenterra, se alimenta permanentemente do mistério da sua decifração – decifrar igual a imaginar, a criar realidade a partir do que os olhos não vêem, a partir do que de nós mesmos se projecta sobre algo? Como incorporar nos nossos modos e na nossa prática o movimento sensível, a aproximação delicada capaz de preservar, revelando, o que paira nos materiais textuais e na memória que deles emana? Como «prefgurar essa memória» abolindo assim, e intencionalmente, um tempo cronológico artifcial que, por sê-lo, separa o que pode estar junto?
Como nos descobrimos e nos perdemos nos sulcos cuneiformes de uma dúzia de placas de argila, quebradiços pela sua natureza material rígida, mas duradouros pela sua natureza poética profundamente humana e subjectiva? Com que voz e com que corpo perturbamos e nos fundimos num lugar sem tempo (o teatro?), em que o outro já não é distante e a sua diferenciação se faz a partir da identifcação das contradições e das revelações (ou da surpresa) que brota de cada um?


Como fazer do acto de ler o próprio mecanismo de representação cénica ou, doutra forma, como fazer da representação um processo de auto-inscrição no que nos é exterior, no que já lá estava, no que nos precede e nos continua? 

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