Por Statt Miller
Guilgamesh é um épico que perdeu a sua data de nascimento.
Sobre este texto pouco sabemos para além da sua origem suméria localizada
imprecisamente no terceiro milénio antes da nossa era, e o que os pedaços da
epopeia deixam ir percebendo sobre o protagonista que dá nome à narrativa.
O
tempo, o imaginário colectivo, a expressão cultural de um povo e civilização
difíceis de determinar são os autores da história contada. No épico reside a
dimensão universal de um enredo que permite uma reflexão filosófica a propósito
das relações humanas, do amor e amizade entre dois seres (Guilgamesh e Enkidu),
das empresas da vida e sobretudo das empresas da morte, sob duas perspectivas
diferentes. Guilgamesh fala-nos
sobretudo sobre a morte: sobre quem a morre na primeira pessoa, e sobre quem,
perante a morte, permanece vivo sendo testemunha desse evento, que é certo, na
vida de cada um de nós. Até ao momento em que nos certificamos da morte, a vida
é de tarefas, de empresas, de feitos heroicos cujo vigor dissuade a mortalidade
de cada um.
Falar
da imortalidade é, assim, necessariamente, falar sobre o seu contrário: a
morte. Só se pensa em imortalidade quando se tem precisamente consciência do
fim das coisas, dos seres e dos tempos. A imortalidade reflecte um desejado de
se “ser para sempre”, afirmação que, paradoxalmente, nega a intenção perpétua
do que propõe, pois só conhece a medida do “para sempre” quem conhece a medida
do que é finito. Apesar de a
imortalidade ser uma circunstância negada à condição de ser humano, este parece
ter estratégias para contrariar a finitude dos tempos, dos espaços, dos seres,
das coisas e das memórias. Exemplo disto é precisamente este épico a que o
século XIX decidiu nomear de Guilgamesh
e, por isto, achámos justo o título de Da
Imortalidade para o espectáculo que a companhia está a preparar sobre esta
epopeia.
O texto que nos propomos encenar
resulta precisamente de um exercício para a imortalidade: a riqueza e a
excentricidade do texto Guilgamesh é o
ele ter-se perdido, reservando-se da erosão que lhe seria esperada, literal e
metaforicamente. As tábuas de argila esconderam-se nas passagens dos anos,
permitiram-se ser esquecidos para finalmente neles se recorrer a uma memória
que a periocidade dos seus criadores não permitiria preservar até aos nossos
dias. Guilgamesh é um texto morto que
começa agora a renascer, desenterrado aqui e ali dos túmulos a que anos de
civilizações, evoluções, antigas e novas crenças o devotaram.
A imortalidade é inerente a Guilgamesh, porque este texto está morto, pois na morte é-nos
reservada a vida eterna, concepção cristã que melhor se aproxima de uma certa
imortalidade. A isto associa-se o cliché muito válido de que só quando se perde
alguma coisa se lhe descobre o verdadeiro valor. Só porque este texto esteve
desaparecido durante tanto tempo lhe concedemos o reconhecimento e importância
que lhe pertencem. E o que é bizarro quando, como companhia, resolvemos
perscrutar este texto para lhe dar vida num exercício de teatro, é
surpreendemo-nos porque, afinal, conhecemos o morto: o exotismo e
excentricidade de Guilgamesh reside no
facto de este velho estrangeiro comunicar connosco, falar melhor de nós do que
nós próprios. Nos textos que compõem o épico verificamos que, em nós, não há
novidade alguma. A universalidade de
Guilgamesh abarca toda a mitologia ocidental, reúne toda a cultura de
crenças, hábitos, histórias e sobretudo de relações interpessoais que reconhecemos
da prática íntima de cada um. Lemos Guilgamesh
e nele encontramos a pré-história de vários episódios da Ilíada, lemos Guilgamesh e
nele encontramos personagens da mitologia clássica, lemos Gilgamesh e nele descortinamos a origem de textos bíblicos o que, a
certo ponto, nos coloca no abismo da profunda dúvida sobre a originalidade da
história de Cristo ou, por outro lado, confirma a universalidade de Deus
traduzida por tempos infinitos, contando sempre a mesma história com
personagens diferentes.
Não há nada que questione melhor o fim das coisas
que o teatro. É cliché por demais conhecido de que a arte da representação é a
arte da efemeridade, do aqui e agora, do irrepetível, etecetera, etecetera. Nem
textos, nem imagens, nem gravações audiovisuais conseguem corresponder em
absoluto à exclusividade do momento de teatro a que se referem. Mais não são do
que links que artilham a memória para
aceder a um momento que já teve o seu tempo, que faz parte do passado, que já
está morto. A nós interessa-nos essa coisa que desaparece, depressa, cuja
importância fica reservada no próprio momento em que se concretiza e que, por
isso, sempre condenada à morte instantânea, assim que se cumpre. Um acto
teatral é, neste sentido uma circunstância ritual, em que uma séria de pessoas
se reúnem para testemunharem uma morte em comum, num evento que,
paradoxalmente, se dedica a fabricar vida.
A temos viajado com Guilgamesh, sobre este épico investido um
trabalho de residências artísticas cujo propósito é desvendar diversos tipos de
abordagem ao texto, passíveis de resultar em matéria útil ao pensamento cénico
de Da Imortalidade. O processo
criativo de Da Imortalidade reproduz
a estratégia de imortalidade de que o próprio Guilgamesh resulta: várias pessoas, juntamente com um elenco também
ele composto por actores de diferentes países e nacionalidades, se reúnem em
tempos diferentes, em espaços diferentes, para contribuírem com heranças
diversas para o seu modo de contar a mesma história. Porque é um épico universal
não o poderíamos reservar para nós, companhia, para nós, fazedores de teatro,
para nós portugueses, a criação de um espectáculo sobre este texto. O exercício
de trabalho com as comunidades dos locais em que preparamos Da Imortalidade, a nível nacional (Lisboa, Viseu, Montemor-o-Novo) e internacional (Palestina, França, Itália) enriquece o
aconchego ao texto e a percepção do mesmo, ao mesmo tempo que se reproduz o
sistema de composição do próprio épico, até ao momento que possa a vir ser
fixada naquilo que será o espectáculo Da
Imortalidade.
A par desta estratégia de concretização, a
implicação de várias pessoas em diversos locais e em tempos diferentes
trabalham também para essa perspectiva da imortalidade: ao relacionarmos Guilgamesh com um maior número de pessoas
e fontes, a memória em que reside essa possibilidade da imortalidade, do “para
sempre”, tem a pretensão de se ver cumprida. Tanto o texto Guilgamesh como o espectáculo Da
Imortalidade passarão assim, novamente, ‘pelo ar’, na metáfora feliz de Luís
Parreira, como terá centenas de anos antes de a história de Guilgamesh ter sido
fixada na forma de texto, desta vez para vir a ser fixada numa de arte que lhe
fabrica uma espécie de vida.
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