quinta-feira, 26 de março de 2015

Da Imortalidade

por Sónia Barbosa

Quero escrever algo sobre o trabalho, a matéria, as experiências do processo de criação do Projeto “Da Imortalidade”.

Estou a ler um livro que se chama “Como o acaso comanda as nossas vidas” de Stefan Klein: “Acaso ou destino? Até que ponto o rumo das nossas vidas obedece a uma ordem?” diz na badana (termo maravilhoso que acabei de descobrir na net) do livro. Bela reflexão científica sobre o acaso, a desordem, a casualidade, a consequencialidade… mais uma vez o homem se debate com a questão do “sentido da vida”: o universo é perfeitamente aleatório, casual, ou há uma ordem universal subjacente a tudo?
Também estou a ler a tese duma amiga minha (a minha primeira professora de yoga, Laura Brizzolara) que relaciona duas práticas: o yoga e o canto. E aí encontrei estas palavras:

“Alla radice di tutto questo, il bisogno, da un lato, di riconoscere la dimensione sacra della vita, senza la quale avverto una mancanza dolorosa di senso nell’esistere, e, dall’altro, la tendenza(che assume per me il carattere di un’imperativa esigenza di chiarezza), a sottoporre a vaglio razionale ogni pensiero, che in modo ricorrente mi fa incontrare il dubbio nichilista.”
Na raís de tudo isto, a necessidade, por um lado, de reconhecer a dimensão sagrada da vida, sem a qual pressinto uma dolorosa falta de sentido no existir, e, por outro, a tendência (que para mim assume um carácter de imperativa exigência de clareza), para submeter a uma análise racional cada pensamento, que de modo recorrente me faz encontrar a dúvida nihilista. (tradução minha)

Mais uma vez, a necessidade de encontrar/procurar um sentido para a existência, versus, a racionalidade, a análise, a ciência, onde esse ímpeto espiritual não encontra muito espaço para existir.

A propósito, uma curiosidade descoberta no primeiro livro que referi: Einstein, que se dizia religioso e crente (é dele a frase “Deus não joga aos dados”), estava certo que havia uma ordem universal subjacente no universo, que simplesmente era demasiado complexa (perfeita? divina?) para nós conseguirmos percebê-la e, principalmente, demonstrá-la. Mas ele tentou. Fez uma experiência com umas partículas irmãs minúsculas (os fotões) que, segundo a sua teoria, apesar de terem existências separadas mantinham uma espécie de ligação misteriosa, que as fazia comportarem-se com a mesma determinada lógica, ainda que estivessem a milhares de quilómetros uma da outra. Entretanto neste livro Stefan Klein, explica (e aí eu não fui capaz de seguir completamente essa explicação) que já se fizeram outras experiências científicas, no seguimento dessas do Einstein, que provam que ele não tinha razão. Ao que parece a ciência continua apenas a conseguir provar a casualidade e a ter muitas dificuldades em provar a tal ordem universal, o sentido da existência.

Lembrei-me agora duma frase que ouvi há muitos anos em Itália e que me fez sorrir e guardá-la até hoje naquelas memórias mais marcantes, que estão naquelas gavetas maiores e acessíveis a que a nossa consciência, sem dificuldade, acede. A frase era “o amor não existe, é por isso que se faz”. Talvez seja a mesma coisa para o sentido. Talvez seja na nossa constante procura dele que ele exista.

E finalmente chego a Guilgamesh:

“Aquele que testemunhou o Abismo, as fundações da terra,
experiente de caminhos, em tudo era sábio!
[…]
O que era secreto encarou, o oculto trouxe à luz,(…)”

O primeiro texto escrito de que temos conhecimento da Humanidade. Fala dum grande rei, em parte humano, em parte divino. Conta a sua história, a sua longa jornada em busca do conhecimento, da glória e da imortalidade.
Porque é que nas mitologias encontramos sempre este tipo de temática, de perspectiva sobre o mundo? E aceitamos esses mitos sem nenhuma dificuldade. Sabemos que nesses tempos (quais são esses tempos?) os homens viam o mundo dessa forma. Aceitavam esse mistério, sabiam que havia algo “oculto” que era necessário “trazer à luz”: a tal ordem universal.
E nós agora lemos esses mitos, essas histórias, e aceitamo-los, mais do que isso, sentimo-nos atraídos por eles, sentimos uma correspondência, uma sensação de verdade que nos chama continuamente. Mas não podemos deixar de seguir também o chamamento da ciência, dentro da qual não cabe a ideia de que um homem possa ser criado a partir dum pedaço de barro pelas mãos dum deus.

E cá estamos mais uma vez na plena contradição. No mistério.

O mistério. Fascina-me o mistério da Memória. Da minha pessoal. Mas também da memória do mundo. Da memória enquanto fenómeno. Da memória como ideia muito presente no Projeto “Da Imortalidade”: estamos a recordar, reviver, requestionar, reinventar este texto que vem lá de muito longe no tempo. Faz parte da memória do mundo.
Mas há uma coisa extraordinária na memória: quando entramos dentro dela, como quando vamos abrir as tais gavetas do nosso cérebro, evocando momentos, imagens ou mesmo cheiros, pode acontecer (e acontece muitas vezes) que o poder dessa memória nos coloque exatamente na situação (emocional, sensorial, e às vezes até mesmo perceptiva) que estamos a recordar. Ou seja, é como se estivéssemos outra vez lá, a viver aquele momento. Isso faz-me pensar na questão do tempo e do espaço sobre a qual Einstein também se debruçava. Quando estamosm a reviver esse momento com toda a intensidade, qual é a diferença substancial no que diz respeito à existência? Estamos ou não estamos a existir naquela situação? É ou não é verdade aquilo que está a existir naquele momento para nós?
Esta capacidade de mergulho numa espécie de existência não temporal, não espacial, faz-me pensar na questão dos mitos, dos arquétipos, das nossas origens… Porque a seguir poderíamos pensar na diferença entre a memória pessoal duma pessoa e a memória do mundo (as memórias que nos chegam, os livros, as obras de arte, o conhecimento que temos do passado…). Ou seja, quando conseguimos entrar em determinados “mundos” evocados (através de textos, imagens e principalmente do nosso envolvimento criativo, emocional, etc.) poderíamos estar novamente nesse espaço de existência não temporal/ não espacial, mas onde a sensação de real, de verdade, de consciência, são inegáveis.

Tudo isto é também o mundo do teatro.

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