por Sónia Barbosa
Quero escrever algo sobre o trabalho, a matéria,
as experiências do processo de criação do Projeto “Da Imortalidade”.
Estou a ler um livro que se chama “Como o acaso
comanda as nossas vidas” de Stefan Klein: “Acaso ou destino? Até que ponto o
rumo das nossas vidas obedece a uma ordem?” diz na badana (termo maravilhoso
que acabei de descobrir na net) do livro. Bela reflexão científica sobre o
acaso, a desordem, a casualidade, a consequencialidade… mais uma vez o homem se
debate com a questão do “sentido da vida”: o universo é perfeitamente
aleatório, casual, ou há uma ordem universal subjacente a tudo?
Também estou a ler a tese
duma amiga minha (a minha primeira professora de yoga, Laura Brizzolara) que
relaciona duas práticas: o yoga e o canto. E aí encontrei estas
palavras:
“Alla radice di tutto
questo, il bisogno, da un lato, di riconoscere la dimensione sacra della
vita, senza la quale avverto una mancanza dolorosa di senso nell’esistere, e,
dall’altro, la tendenza(che assume per me il carattere di un’imperativa esigenza
di chiarezza), a sottoporre a vaglio razionale ogni pensiero, che in modo
ricorrente mi fa incontrare il dubbio nichilista.”
Na raís de tudo isto, a necessidade, por
um lado, de reconhecer a dimensão sagrada da vida, sem a qual pressinto uma
dolorosa falta de sentido no existir, e, por outro, a tendência (que para mim
assume um carácter de imperativa exigência de clareza), para submeter a
uma análise racional cada pensamento, que de modo recorrente me faz encontrar a
dúvida nihilista. (tradução minha)
Mais uma vez, a necessidade de
encontrar/procurar um sentido para a existência, versus, a racionalidade, a
análise, a ciência, onde esse ímpeto espiritual não encontra muito espaço para
existir.
A propósito, uma curiosidade descoberta no
primeiro livro que referi: Einstein, que se dizia religioso e crente (é dele a
frase “Deus não joga aos dados”), estava certo que havia uma ordem universal
subjacente no universo, que simplesmente era demasiado complexa (perfeita?
divina?) para nós conseguirmos percebê-la e, principalmente, demonstrá-la. Mas
ele tentou. Fez uma experiência com umas partículas irmãs minúsculas (os
fotões) que, segundo a sua teoria, apesar de terem existências separadas
mantinham uma espécie de ligação misteriosa, que as fazia comportarem-se com a
mesma determinada lógica, ainda que estivessem a milhares de quilómetros uma da
outra. Entretanto neste livro Stefan Klein, explica (e aí eu não fui capaz de
seguir completamente essa explicação) que já se fizeram outras experiências
científicas, no seguimento dessas do Einstein, que provam que ele não tinha
razão. Ao que parece a ciência continua apenas a conseguir provar a casualidade
e a ter muitas dificuldades em provar a tal ordem universal, o sentido da
existência.
Lembrei-me agora duma frase que ouvi há muitos
anos em Itália e que me fez sorrir e guardá-la até hoje naquelas memórias mais
marcantes, que estão naquelas gavetas maiores e acessíveis a que a nossa
consciência, sem dificuldade, acede. A frase era “o amor não existe, é por isso
que se faz”. Talvez seja a mesma coisa para o sentido. Talvez seja na nossa
constante procura dele que ele exista.
E finalmente chego a Guilgamesh:
“Aquele que testemunhou o
Abismo, as fundações da terra,
experiente de caminhos, em
tudo era sábio!
[…]
O que era secreto encarou,
o oculto trouxe à luz,(…)”
O primeiro texto escrito de que temos
conhecimento da Humanidade. Fala dum grande rei, em parte humano, em parte
divino. Conta a sua história, a sua longa jornada em busca do conhecimento, da
glória e da imortalidade.
Porque é que nas mitologias encontramos sempre
este tipo de temática, de perspectiva sobre o mundo? E aceitamos esses mitos
sem nenhuma dificuldade. Sabemos que nesses tempos (quais são esses tempos?) os
homens viam o mundo dessa forma. Aceitavam esse mistério, sabiam que havia algo
“oculto” que era necessário “trazer à luz”: a tal ordem universal.
E nós agora lemos esses mitos, essas histórias,
e aceitamo-los, mais do que isso, sentimo-nos atraídos por eles, sentimos uma
correspondência, uma sensação de verdade que nos chama continuamente.
Mas não podemos deixar de seguir também o chamamento da ciência, dentro da qual
não cabe a ideia de que um homem possa ser criado a partir dum pedaço de barro
pelas mãos dum deus.
E cá estamos mais uma vez na plena contradição.
No mistério.
O mistério. Fascina-me o mistério da Memória. Da
minha pessoal. Mas também da memória do mundo. Da memória enquanto fenómeno. Da
memória como ideia muito presente no Projeto “Da Imortalidade”: estamos a
recordar, reviver, requestionar, reinventar este texto que vem lá de muito
longe no tempo. Faz parte da memória do mundo.
Mas há uma coisa extraordinária na memória:
quando entramos dentro dela, como quando vamos abrir as tais gavetas do nosso
cérebro, evocando momentos, imagens ou mesmo cheiros, pode acontecer (e
acontece muitas vezes) que o poder dessa memória nos coloque exatamente na
situação (emocional, sensorial, e às vezes até mesmo perceptiva) que estamos a
recordar. Ou seja, é como se estivéssemos outra vez lá, a viver aquele momento.
Isso faz-me pensar na questão do tempo e do espaço sobre a qual Einstein também
se debruçava. Quando estamosm lá a reviver esse momento com toda a
intensidade, qual é a diferença substancial no que diz respeito à existência?
Estamos ou não estamos a existir naquela situação? É ou não é verdade
aquilo que está a existir naquele momento para nós?
Esta capacidade de mergulho numa espécie de
existência não temporal, não espacial, faz-me pensar na questão dos mitos, dos
arquétipos, das nossas origens… Porque a seguir poderíamos pensar na diferença
entre a memória pessoal duma pessoa e a memória do mundo (as memórias que nos
chegam, os livros, as obras de arte, o conhecimento que temos do passado…). Ou
seja, quando conseguimos entrar em determinados “mundos” evocados (através de
textos, imagens e principalmente do nosso envolvimento criativo, emocional,
etc.) poderíamos estar novamente nesse espaço de existência não
temporal/ não espacial, mas onde a sensação de real, de verdade, de
consciência, são inegáveis.
Tudo isto é também o mundo do teatro.
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